quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Mili

Ela surgiu em meu complicadíssimo mundo de 2009. Recém separada, bebendo muito, desempregada e absolutamente perdida. Quando olho para trás não consigo me lembrar de nenhum outro período mais louco ou mais triste. E no entanto, foi o tempo em que mais aprendi sobre a vida. Eu, 28 anos, sem pai, mãe, marido, filho, rumo, religião ou futuro bebendo em uma praça. Ela, 17 anos, com pai, mãe, sem rumo, religião e nem pensando no futuro bebendo em uma praça. 
Simpática, engraçada e bonita de um jeito que eu nunca fui ou poderia ser, se aproximou porque eu cantava Janis Joplin enquanto um hippie tocava o violão sentada na arquibancada do teatro de arena da praça. Entre uma música e outra ela batia palmas, perguntava de onde eu vinha, onde tinha aprendido a cantar daquele jeito e falava: "Você é a Janis Joplin, gata! E hoje eu te encontrei!"
Já havia sido chamada de Janis Joplin antes e isso já não me comovia mais como acontecia quando eu tinha 15 ou 16 anos. Minha paixão por Joplin, Morrison ou Hendrix se fora muito tempo antes. Só estava lá bêbada e eufórica dando à César o que era de César. Cantando o que gostariam de ouvir naquela noite. E eu olhava para ela e pensava: "O que essa pirralha bonitinha sabe de música ou de qualquer coisa para ficar aqui me rodeando achando que vai ter minha atenção?"
Mas ela conseguiu minha atenção. Meu ego me entregou pra ela. Vocalista sem banda já fazia dois anos. As palmas me ganharam. A bajulação que parecia tão sincera me pegou de jeito.
Naquela mesma noite madrugada adentro ela estava cortando os braços com a fivela de um cinto e eu não fiquei surpresa. Adolescentes do underground são assim. Tão "Clarices" de Legião Urbana. Um dia eu já fui uma. Mas não era corajosa para ser radical assim em chamar a atenção. Ou não sentia a dor que ela sentia. Que mais tarde eu fui saber, existia sim. 
Daquela noite em diante começamos a nos encontrar semanalmente. E a cada semana era uma surpresa. Ela era especial. Especial em todos os sentidos em que uma pessoinha pequena daquelas poderia ser. Pequena no tamanho, porque ela era na verdade grandiosa. Dona do senso de humor mais perspicaz que já encontrei em alguém, verdadeira e autêntica em cada segundo da sua existência, corajosa e livre de qualquer tipo de preconceito e pasmem, cheia de princípios tão nobres que desbancariam qualquer religioso que eu tenha ouvido falar. Aquele monte de qualidades tão banais hoje em dia que ninguém com menos de 20 anos parece levar muito à sério... Honestidade, honra, não fazer com o próximo o que não gostaria que fizessem com você, etc etc. Sim, ela era especial.
Quando me dei conta eu tinha uma nova amiga. Uma companheira de baladas (Quantas histórias? Poderiam se tornar um livro!). Um ombro pra chorar. Alguém para dar risada sem parar e fazer um monte de merda que não deveríamos fazer e que me fazia rir de tudo no final. 
Eram em dias ruins que ela era ainda melhor. Eu ligava pra ela pra encher sua cabeça de 20 anos com os meus problemas de 30. Ela ouvia, me chamava de ridícula, insuportável, imprestável, retardada. Sempre dizia que a culpa de tudo era minha, mas que ela mataria pessoalmente todos os que estavam me fazendo mal com as próprias mãos. E eu ria. Ela então dizia que viria me encontrar e que iríamos xingar todo mundo e que tudo o que eu estava sentindo ia passar. Então a gente se encontrava. Xingava todo mundo. E passava.
Ela seguiu vivendo alucinadamente sem tempo para considerar muita coisa. Ela tinha uma visão simples das coisas. E era o que eu achava mágico nela. Ir se tornando tão descomplicada com o passar do tempo, cada dia mais. E ela vivia mil histórias, vivia muitos dramas... E sempre dava a volta por cima mandando tudo e todos à merda, com a classe e dignidade de uma diva. Morou na minha casa um tempo. Foi morar no Rio de Janeiro um outro tempo. Morou em outros lugares também. E falar com ela pelo telefone era a minha terapia. Então ela voltou. A vida foi acontecendo.
Quase cinco anos se passaram... 
Eu, 32 anos, mãe, marido, casa para cuidar, tentando ser melhor do que sempre fui. Ela, 22 anos, acalmando o coração selvagem e indomável, apaixonada pela primeira vez, tentando ser melhor do que sempre havia sido. Estávamos trabalhando na mesma empresa e nos encontrando diariamente para os cigarros na correria das pausas do trabalho. As mesmas risadas, os mesmos "insuportável, retardada, ridícula", nossa paixão uma pela outra nunca se esfriou, não importavam as mudanças que havíamos vivido.
Então ela sofreu um acidente de moto em um sábado à noite com o namorado, foram socorridos, ela passou por uma longa cirurgia no dia seguinte devido às muitas fraturas. 
No dia seguinte da cirurgia eu estava lá no hospital. E ela parecia bem apesar de tudo. Sem danos neurológicos. Fizemos planos para a sua recuperação, pois ela ficaria um tempo sem andar. Sorria bastante, dizia estar contente porque o acidente não afetou o rosto dela e lamentava a jaqueta rasgada no resgate, arrumava a franjinha sem parar com o espelhinho e tirava sarro dela mesma naquela situação.
Me despedi e disse que ia estar ao lado dela, que a amava e que tudo ia dar certo. Mas saí de lá chorando muito. No dia seguinte ela teve complicações. 10 de julho de 2013. E meu coração ainda não parou de doer e eu ainda estou assustada. Ela não está mais aqui.
No velório não parecia ela lá. E eu cantei pra ela uma vez mais. Beatles. E... Assim, de um dia pro outro, 22 anos, uma vida inteira pra viver, mais mil histórias para contar, ela se foi.
E eu sinto saudade. Todos os dias. Eu sinto saudade. Da voz dela, do sorriso, das risadas que não daremos mais, dos sonhos bobos que não falaríamos mais, do fim-de-semana que não passaremos juntas, do quanto ela sinceramente me amou pelo que eu era, apesar de quem eu era.
Mili, um dia eu espero te encontrar em algum lugar me esperando pra dizer "Madonna, você chegou!" e eu vou responder "Lady Gaga, que saudade!"... E a gente vai rir outra vez, você vai me mostrar como é o céu, onde é a melhor balada e me apresentar pra todo mundo... E vai dizer assim "Gente, essa é a minha amiga Janis, vocês precisam ver ela cantando, ela ar-ra-sa!!!"
Então eu canto pra você, mais uma vez...